Pés ruços, foi um conto que escrevi em 2006. Há dois dias, através de uma conversa sobre pseudo-burgueses, relembrei desse conto e resolvi compartilhar com vocês, eis:
PÉS RUÇOS
(Luzia Rocha- 14/07/2006)
Ela observava uma mulher de cabelos nem tão brancos nem tão pretos sentada no banco laranja de fórmica, de pés ruços, saia de tergal até os joelhos, abraçada à bolsa como a um filho. Olhos inertes, boca flácida num semblante calmo e sereno.
Era domingo. O sol à pino e o frenesi das pessoas, ansiosas pelo encontro com o mar, faziam com que aquela figura se destacasse. O vagão sacolejava, os sons dos trilhos cortavam a escuridão e junto, a imagem da bolsa de lona, refletida na janela, rota, próxima ao peito da mulher de pés ruços.
Os futuros banhistas, num falatório contínuo, anunciavam que ali havia apenas duas pontas que se cruzavam: a da jovem que a observava e a da mulher de pés ruços. A jovem tentava não fixar o olhar para que sua mente apagasse aquela imagem pitoresca, contudo, a cada parada do metrô, não resistia, olhava. Em dado momento, a mulher levantou-se. A jovem sentiu uma palpitação. O vagão parou, as portas se abriram. As duas saíram. A jovem foi caminhando um pouco atrás, sem ser percebida. Sabia que seu comportamento era anormal, seguir uma desconhecida sem saber o destino. Não era do seu feitio andar a esmo. Pelo contrário, gostava de objetivações, certezas, caminhar por lugares conhecidos, porém, a adversidade, que aqueles pés ruços causavam, servia de estímulo a continuar. "Até onde isso daria? Estou fugindo de meu destino!", pensou a jovem sem o comando das decisões. caminharam cerca de uns quinze minutos. Chegaram num hospital. Vigilantes na porta selecionavam quem devia ou não entrar. O suor escorria, o horário de visitas era dali a uma hora, o jeito era esperar, em pé, na fila que começava a se formar. A jovem alinhou-se atrás dos pés ruços e escutava interessada o diálogo entre ela e um homem de barba branca e aparência cansada. Descobrira então, que a tal mulher visitava o filho. Este fizera uma cirurgia no braço após uma queda em casa. Sofria dos nervos desde a adolescência. Há muito não entrava em crise, graças aos novos remédios. Antes, debatia-se e gritava, agora, passava o tempo todo deitado e calado. O marido cuidava enquanto ela trabalhava como passadeira. " O pobre sofria do coração, não aguentou, enfartou e morreu", dizia resignada. Dias depois ao falecimento do pai, o filho quebrara o braço, fratura exposta. Lamentava por não estar junto e por isso não soubera explicar como o acidente se sucedera. Precisava trabalhar, viva numa casa de cômodos, não contava mais com os biscates do marido e muito menos com o fornecimento dos medicamentos por parte do SUS. Com os vizinhos não contava porque tinham medo. Agora, após um mês de internação, trazia os documentos para que a assistente social entrasse com o pedido de transferência do filho para um hospital psiquiátrico. "Lá será melhor, terá médicos e alguém pra tomar conta", dizia querendo acreditar nas próprias palavras. A fila crescia. Era domingo e nela não havia só mulheres e homens, mas também, crianças. Crianças cujas brincadeiras ecoavam por todo cinza do pátio.
O vigilante começou a colar os adesivos. A jovem teve vontade de abraçar bem forte aquela mulher e compartilhar daquela dor. Os pés ruços, a fila andando... Recuara. Saiu da fila, olhou as crianças, olhou mulheres e homens, olhou novamente a mulher dos pés ruços, tudo de longe, recuando cada vez mais. O que aquela mulher não sabia, mas a jovem sim, era que ali, todos sofriam do mesmo mal: a indiferença. A lágrima veio. Era domingo, o sol a pino. Enquanto isso, na praia lotada, homens e mulheres exibiam seus corpos seminus...
A todos uma boa segunda-feira.
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