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Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos

Como definir em palavras o que está em Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos do escritor Leonardo Valente? Como definir, na concretude das palavras, aquilo que senti, ouvi, elucubrei e experimentei? Tudo que escreverei pode ser uma “farsa” em vários aspectos, mas em respeito ao autor, não será.

Devorei o livro em menos de um dia. Impossível “desgrudar” da leitura. Acho que a habilidade jornalística do autor proporciona isso. O livro te prende, na verdade, a história de D. Aliás, como definir D.? D. é indefinível porque é sentimento. Na verdade, D. é um trem descarrilado que vem te atropelando do inicio ao fim. D. é um atropelo. Encaro atropelo como subversivo. O livro é subversivo. Tudo o que é subversivo atrai, D. me atraiu plenamente.  O autor subverte tudo, desde a forma da narrativa até o estilo.

Sou uma pessoa de símbolos e Criogenia é cheia deles. Pra mim, símbolos são as formas de expressão mais sofisticadas e antigas de enxergar o mundo, então, símbolos são clássicos. Viver em sociedade sem símbolos é quase impossível. D. vive os seus símbolos, estão lá prontos para serem descobertos. Apesar do autor, por inúmeras vezes, querer “pregar peças” nos leitores, os símbolos ajudam a nortear a história de D., se é que D. precisa de norte... Mas vamos lá...

D. possui cinco maridos. O numeral 5 expressa a união, é o número nupcial segundo os pitagóricos, expressa harmonia e equilíbrio, tudo que D. não tem. A personagem pode, em certos momentos, querer, ou fingir querer, essa harmonia com seus maridos, mas não consegue, daí a farsa de tentar manter relacionamentos por questões sociais ou por medo da solidão. D. é a quarta letra do alfabeto, 4 é o duplo de 2, e para os Bambaras, tudo que é duplo significa perfeição, coisa que D. também não é, aliás, existe perfeição? O 2 remete a dualidade, e nós como humanos somos duais. Como citei antes para os Bambaras a duplicidade é a perfeição, então, para eles os bebês gêmeos são motivos de alegria. Essa referencia dos gêmeos me levou ao nome dos maridos de D., todos Damião. Na religião católica Damião é irmão gêmeo de Cosme (Cosme e Damião), Damião significa domador, vencedor, aquele que subjuga. Os maridos de D., de certa forma, a “domou”. A personagem castrou seus instintos por causa deles, se sujeitou a essas relações por convenção social, porém, em dado momento da narrativa, lhe vem o poder do basta, que se aplica em um enorme “não!” no centro da página, um “não” pleno, solitário. Como o autor sinaliza que demônios e deuses começam com D., eu como leitora, vou me apropriar dessa afirmativa e dizer que D. é uma Deméter a grande deusa da fertilidade, da colheita, dos ciclos da vida e da morte. Um ciclo contínuo que é expresso numa espiral “A VERDADE É, QUE SE PUDESSE, ESCREVERIA EM FORMA DE ESPIRAL, MAS TANTO A VIDA QUANTO A LÍNGUA ME IMPÕEM RETAS E RUPTURAS.” Voltando ao numeral, cinco são os sentidos (olfato, tato, paladar, audição e visão), pois bem, ao ler Criogenia, esses sentidos são aflorados. Pelo menos, os meus foram, eu senti o sabor das comidas e seus cheiros, em algumas passagens eu associei à música (audição) e vi a transformação de D. e a minha ao longo da leitura. Como assim música? Sim, D. me soprou ao pé do ouvido as músicas: Infinito Particular de Marisa Monte, Patota de Cosme eternizada na voz de Zeca Pagodinho e Socorro eternizada por Gal Costa, mas D. prefere Socorro porque é “portadora da imunodeficiência afetiva”. Já o tato, foi na gramatura do papel, sensação de estar pegando as palavras, sensação de concretude.

Não posso deixar de mencionar que vi muito da obra de Clarice Lispector e de Rubem Fonseca em Criogenia. Clarice nos questionamentos internos, na forma narrativa, na quebra do padrão estilístico; Rubem Fonseca no capítulo onde fala sobre a urina, que logo me transportou ao livro Secreções, Excreções e Desatinos, além de outras passagens, mas também quando é descrita a dor de dente da personagem transportando-me ao livro O cobrador. Um adendo sobre a dor de dente: o dente corresponde ao olho que é associado ao conceito de inteligência e do universo, o dente que dói em D. é o molar, que simboliza proteção, resistência, perseverança, tenacidade e obstinação nas palavras (segundo Jean Chevalier), isto é, ao sentir essa dor D. está, momentaneamente, enfraquecida. O recurso da intertextualidade está bem presente em Criogenia. Eu me pergunto: será que D. é o autor? Joguei para o Universo de possibilidades...

Mas o que é criogenia? É uma técnica de congelamento utilizada no campo da ciência. Pode-se usar esse método para congelar corpos, espermas e óvulos. Alguns creem que pode congelar um corpo e ressuscitá-lo adiante, mas no livro tem um sentido mais amplo. A personagem quer ser eternizada, conservada, como uma produtora de palavras. Quer “congelar” passagens ruins em sua trajetória amorosa e não amorosa. Quem não tem ou teve a vontade de parar/congelar o tempo? Quem não gostaria de eternizar um momento bom da vida!?

Por falar em tempo, o meu está esvaindo-se, contudo não posso deixar de mencionar que Criogenia foi meticulosamente pensado. Uma escrita caprichosa, rica em detalhes, em pormenores que vai desde a escolha da capa até última linha do texto. A capa é a reprodução da tela do pintor Ismael Nery, Figuras em azul, e a cor azul também aparece no final do livro. Só na capa explode símbolos: podemos visualizar duas faces que se separam; menção as nossas sombras; dois seres que se completam e a gemelaridade (trago Cosme e Damião novamente). Já o azul simbolicamente é a mais profunda das cores; é um mergulhar sem obstáculos até o infinito; é também a mais fria (criogenia) das cores, é o real se transformando em imaginário, é a desmaterialização. Não é necessário entender de símbolos para ler Criogenia. A todo momento, menciono “a personagem” porque o que há no livro, independe de gênero. Dor, inveja, medos, traições, desejos, alegrias, tristezas, ambiguidades são traços humanos e quanto a isso Leonardo Valente está de parabéns pela sensibilidade em trazer questões delicadas à baila.

Aí você leitor, pode me perguntar: e o manifesto pelos prazeres perdidos? O que é? Leia o livro, porque neste momento, estou na estação esperando o próximo trem!




      

  

 

 


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