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Saias pregueadas

Chove no Rio e esse tempo me permite vasculhar guardados e tentar compartilhar com vocês. Então, resolvi postar um texto que escrevi em 2006. Sigo ouvindo as preciosas músicas de Cartola.

Uma boa semana a todos.


Saias pregueadas
(Luzia Rocha - 31/01/2006)

“Foi-se o tempo em que usávamos saias pregueadas!”, pensou ela ao observar as meninas indo para escola.
Judite morava em Copacabana na esquina da Rua Duvivier com a Rua Barata Ribeiro num apartamento de dois quartos, sala, banheiro, dependências e cozinha de pastilhas. Judite gostava das mesmas coisas há anos. Não admitia que ninguém movesse um objeto de sua casa sem seu consentimento. Seu sinteco era perfeito, tapetes, móveis pesados, escuros (cheirando a óleo de peroba), paninhos de crochê, espelho emoldurando a sala de jantar, cortinas de trilho com voil e cristaleira.
Na sala, ostentava um oratório com a imagem barroca de Nossa Senhora do Bom Parto que fazia questão de emprestar a toda moça conhecida que ia parir. Todo final de tarde acendia uma vela, o terço entre os dedos: “Ó Maria Santíssima, vós, por um privilégio especial de Deus...” rezava, tendo apenas como testemunha o sol que já cansado teimava entrar pela janela lateral. Depois tomava seu chá com bolachas e estava pronta para dormir.
Judite usava laquê e mantinha a cor dos cabelos de outrora. Calça de gabardine vincada, blusa de linha, colar de madrepérolas, brincos de pressão, batom, rouge; lá vai encontrar-se com as amigas do Bairro Peixoto para mais uma partida de gamão.
A única modernidade permitida, mesmo assim com resistência inicial, era a hidroginástica recomendada pelo médico. Matriculou-se na mesma academia de suas amigas do gamão. Três vezes na semana saía com o roupão atoalhado numa sacola, com o maiô Catalina e a touca. Colocar a touca era uma penitência, a pobre teimava em ficar no cocuruto parecendo temer o mar de cabelo que a esperava. No primeiro dia ao olhar-se no espelho do vestiário, assustou-se. Uma das amigas sugeriu a abolição do laquê. “Já me custa ficar aqui dando pulinhos na água! Sem meu laquê não!” A outra compadecida ajudou na difícil tarefa de colocar as melenas em seu estado natural.
Num desses dias em que voltava da hidroginástica viu um grupo indo para a escola, conversando animadamente. Falavam sobre a festa na noite anterior em casa de uma das do grupo, inclusive do “galinha” do André do terceiro ano. Judite, entorpecida pelos longos cabelos e o jeans apertado, as seguiu até a porta de seu prédio. Antes de entrar, observou-as atravessando a rua às gargalhadas completamente soltas como se donas da rua fossem.
Em casa, Judite não parava de pensar na cena que vira. Aquela imagem lhe remeteu ao tempo em que era uma doce e ingênua colegial, onde usava saia de pregas, com meias ¾ e gravatinha cujo único enfeite permite permitindo era laço de fita no cabelo. “Escola não é lugar de vaidades e sim de estudo e disciplina”, dizia a freira quando surpreendia uma das alunas tentando passar batom. “Elas hoje usam cada par de argolas que parece um bracelete”, exclamou para si.
Lembrou do marido. Grande companheiro que sempre a tratou com carinho, sem arroubos, só a amando placidamente. “Ah, augusto que falta você me faz!”, suspirou. Lembrou também de como se conheceram: numa festa de família. Augusto era amigo de seu irmão mais velho; estudava engenharia. Logo vieram o pedido de namoro e os passeios de bonde aos domingos na companhia da Tia Carminha, viúva e sem filhos – com seus óculos na ponta do nariz controlando todo o entrelaçar das mãos. O casamento realizado em logo após a formatura de Augusto. A viagem de lua-de-mel dada pelos padrinhos a Nova Friburgo. A camisola de organza usada na noite de núpcias e que nem foi tirada. Nesse momento, Judite corou e sorriu placidamente.
Mas algo a inquietou, algo que estava adormecido e bem escondido: a imagem do seu único filho Jorge. Doeu. Uma dor fininha, difícil de curar, uma dor intermitente. “Onde está Jorge?” Não sabia. Fazia vinte anos que não falava com o filho.
Jorge era um menino de ouro. Quando criança fazia gracinha para todos. Era o xodó da família. Cresceu cercado por mulheres. Estudou em bons colégios. Na adolescência passou a frequentar bailes com os amigos. Fumava escondido, mas logo a mãe descobriu. Arteiro, era assim que a mãe o definia livrando-o das broncas do pai. Aos dezenove anos, já na faculdade de engenharia, começou a namorar uma amiga dos tempos de colégio. A família toda aprovou, inclusive a da moça. O tempo passou, Jorge formou-se e o casamento adiou. Quando indagado sobre o casamento dizia que estava cedo para tal. A namorada foi estudar História da Arte em Paris e Jorge, com a desculpa de estar perto da amada, foi também. O pai, que confiara o escritório ao filho, esbravejou Judite o acalmou. Um ano depois Jorge voltou com o relacionamento rompido. Judite estranhou, mas nada falou. Jorge passou a não comparecer no escritório com a frequência de antes e nem em casa parava mais. Augusto morreu e logo depois da missa de sétimo dia veio a revelação: “Mãe, sou gay.” Judite, num acesso de fúria e dor, gritou com todas as forças de seu pulmão. Jorge foi embora sem deixar endereço levando apenas duas malas. Desde então, nunca mais dera notícia.
A empregada entrou, deparou-se com Judite sentada na cama, junto à sacola da hidroginástica, com os brincos de pressão, o colar de madrepérolas – completamente absorta – lamentando nunca ter emprestado a Nossa Senhora do Bom Parto à nora.
            É, foi-se o tempo em que se usavam saias pregueadas... Os carros e ônibus buzinando. Uma lágrima correu.                   

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