Pular para o conteúdo principal

O sabão em pó e o ovo de páscoa

Sei que a Páscoa é só no domingo, mas em virtude do feriadão, resolvi postar logo. Recorro ao meu baú da memória e eis que surge uma crônica que escrevi em 2007. Ei-la:



O SABÃO EM PÓ E O OVO DE PÁSCOA
( Luzia Rocha - 02/04/2007)

Nesta cidade de São Sebastião há coisas que acontecem sem a força dos nossos desejos. Como diria Shakespeare: "Há mais coisas que acontecem entre o céu e a terra que sonha nossa vã filosofia".

Estando eu na rua do meu subúrbio munida de uma sacola de compras, extasiada por ter adquirido uma nova marca de sabão em pó, quando um casal com seus três filhos passam por mim. Roupas simples, sorriso sincero, olhos a transbordar felicidade, ternura e amor, vão de mãos dadas. As crianças, em idades próximas, seguram, satisfeitas, o pequeno embrulho oval de papel laminado. Seguram-nos com a força que suas permitem. Os pais fitam-nas, contentes pelo dever cumprido.

Acompanho-os visualmente até se misturarem à multidão. Logo sou distraída pelas vitrines e pelo barulho das kombis com seus alto-falantes gritando o itinerário. Como estou diante de uma loja de R$1,99, resolvo entrar. Lá dentro, toalhas, potinhos, pregadores, pano de prato, cabides, jogos de banheiro e... Ovos de páscoa! Aqueles mesmos ovos cujas crianças seguravam. Ali, pendurados feito uva em parreiras. Reluzentes tais como os olhos daquelas crianças. Saio rapidamente, assustada, trôpega.

Na rua, o frenesi da pessoas e o ar pesado, contribuem para o meu repentino e crescente mal-estar. Imediatamente penso na Páscoa e no que seria. Se tomarmos o ovo pela sua simbologia - o germe que desenvolverá a manifestação e que o manifestado se dará após um período de incubação - a Páscoa, então, é o momento da renovação das esperanças e ideias, reavaliação dos dogmas, a transformação de nós mesmos, ou seja, amadurecimento, a (re)nascimento. Dar o ovo é dar a transformação ou pelo menos esperar por ela. É compartilhar o momento da mutação. Mas será que carregamos o espírito pascal em nós? A correria que toma o nosso tempo e forças, onde o "cada um por si" impera, em que a cultura do "tempo é dinheiro" está cada vez mais internalizada, certamente não há brechas para exercitarmos esse tipo de questionamento. A ociosidade, o tato, a contemplação e que nos diferencia dos outros animais - a articulação do pensamento - estão sendo abolidos. Somos empurrados para a modernidade que perdemos o hábito do pensar. É lamentável e ao mesmo tempo compreensível porque pensar traz medo, traz revolta, traz vergonha, traz dilemas que ainda não estamos, ou nunca estaremos, preparados para enfrentar... Pensar dói.      

 Aqueles pais por um átimo de segundo esqueceram a dura batalha que a vida os impõe. Ver a satisfação de seus filhos integrados no todo, valia o suor de cada dia trabalhado.

Espero que não só na Páscoa pensemos nesse ideal de renovação, mas diariamente. Isso se daria gradualmente, nos pequenos gestos, nas palavras, nos pequenos episódios que a vida nos apresenta. Assim, perceber, criticar o mundo e a nós mesmos se tornará um hábito. O chocolate pode ser amargo ou doce, vai da escolha de cada um. Analogicamente, a vida também é assim para uns, porém, na maioria dos casos, não há esse poder de escolha.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A glândula pineal e o Olho de Hórus

Sempre gostei de pesquisar sobre muitas coisas, principalmente se eu estou envolvida de alguma forma com determinado assunto. E a espiritualidade é a bola da vez, na verdade, sempre foi, só que agora tem aflorado ainda mais. Quanto mais me aprofundo sobre algo, mais a vida vai me levando... Cheguei na glândula pineal. A glândula pineal ou epífise é uma pequena glândula endócrina localizada perto do centro do cérebro, entre os dois hemisférios. Conectada aos olhos através dos nervos. Produz melatonina que promove o ritmo diário de luz e escuridão, com isso ela é reguladora do sono. Também é reguladora de outras glândulas dentre elas está a hipófise. Ela tem o tamanho de um caroço de ervilha. Se fizéssemos um corte cerebral ela estaria localizada entre os dois olhos e na direção abaixo da moleira. Em algumas pessoas a pineal apresenta cristais de apatita. E segundo alguns médicos quanto maior o número de cristais maior a capacidade de captar ondas eletromagnéticas. Acho válido um ap...

Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos

Como definir em palavras o que está em Criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos do escritor Leonardo Valente? Como definir, na concretude das palavras, aquilo que senti, ouvi, elucubrei e experimentei? Tudo que escreverei pode ser uma “farsa” em vários aspectos, mas em respeito ao autor, não será. Devorei o livro em menos de um dia. Impossível “desgrudar” da leitura. Acho que a habilidade jornalística do autor proporciona isso. O livro te prende, na verdade, a história de D. Aliás, como definir D.? D. é indefinível porque é sentimento. Na verdade, D. é um trem descarrilado que vem te atropelando do inicio ao fim. D. é um atropelo. Encaro atropelo como subversivo. O livro é subversivo. Tudo o que é subversivo atrai, D. me atraiu plenamente.   O autor subverte tudo, desde a forma da narrativa até o estilo. Sou uma pessoa de símbolos e Criogenia é cheia deles. Pra mim, símbolos são as formas de expressão mais sofisticadas e antigas de enxergar o mundo, então, símbolo...

Morricone e o assovio do meu pai *

Meu pai sempre gostou de assoviar. Desde muito pequena o ouvia assoviando pela casa melodias, para mim, estranhas. Acho que o meu primeiro contato com a música foi através dos assovios e, também, das canções de ninar entoadas por meus pais.  Mas algumas notas eram recorrentes nos assovios de meu pai e só alguns anos mais tarde pude identificá-las. A melodia em questão faz parte da música tema do filme Três Homens em Conflito , ou O bom, o mau e o feio , composta pelo maestro e compositor italiano Ennio Morricone. O filme, do cineasta italiano Sérgio Leone, é de 1966 e ficou rotulado como um western spaghetti. Ter Ennio Morricone como compositor de suas trilhas era uma de suas marcas. Porém, Morricone se fez por si só independente de Leone e dos westerns . Muitas de suas composições foram eternizadas. Hoje com apenas alguns trechos melódicos identificamos o filme ao qual elas pertencem. Um filme sem uma boa trilha sonora não existe. Ele pode até ter um bom roteiro, mas sem uma...