Em virtude de atribulações semanais que possivelmente me impedirão de escrever algo inédito, postarei um texto que escrevi em 2007. Uma boa semana a todos!
Tarde em São Clemente
(04/06/2007)
Foi assim que eu o conheci: sentada naquele banco olhando a copa das árvores. Era uma tarde amena de primavera em que o sol colore as flores dando a certeza de que foram feitas para serem contempladas.
Era mais um dia como outro qualquer cheio de inquietações, quando na calçada, ao preparar-me para fazer sinal para o ônibus, a imponência de dois leões ladeando a entrada de um casarão, fez o meu dedo em riste recuar. Dois leões cinzas, imóveis, petrificados, a espreitar o menor sinal de vacilo. O sinal fecha, resolvi atravessar. Encontrei o portão aberto como se já esperasse a minha visita.
Escada negra, tapete carmim e o piso de madeira revelavam um corredor longilíneo. Com o caminhar calmo e as crescentes expectativas, comecei meu trajeto. O banheiro com o encanamento londrino a gás e o biombo a abraçar o sanitário confirmavam os pudores de outrora. As janelas grandes e estreitas com cortinas diáfanas, presas somente nas venezianas, escondiam moçoilas do amado. A benção de Nossa Senhora do Rosário sobre a cama do casal misturava o sagrado e o profano. No quarto de vestir, o leque de penas, o espelho em cima do toucador, o sol incidindo à direta refletia a minha imagem. O tapete carmim e o ranger do piso conduziram-me até a sala de baile. Jarros grandes, paredes em tons cereja, tais como em Lucíola, cobertas por espelhos: decoração certa para o rodopiar dos casais. Na biblioteca, livros dispostos em estantes fortes e imponentes, o cheiro de lustra-móvel misturado ao da madeira, a escrivaninha com a cadeira de acento pirografado e o contínuo ranger de piso que teimava em perseguir-me.
A tarde era agradável. No jardim crianças brincavam animadamente entre os bancos ocupados por casais de namorados. Ao longe avistei um banco vazio perto de um sapotizeiro e sentei. As parreiras preparando-se para o fruto de Baco, atraiam os pardais. As azaléias em flor, o cantar melancólico dos sabiás e o beijo dos colibris nos lírios anunciavam a colorida chegada da primavera. Como era bonita e agradável aquela cena! Com um toque em meu ombro, um senhor de estatura mediana e voz serena, pediu-me licença para sentar. Observei por quase vinte minutos aquele homem ali ao meu lado imaginando os percalços que os já presentes cabelos brancos ousaram enfrentar. Quantos amores, quantas desventuras, quantos mistérios e descobertas, aquele homem de bengala em punho, puderam decifrar. Haveria de ter o mesmo encanto a vida atual para aquele senhor? Sua íris, com o contorno já embranquecido, virava-se ora para os casais, ora para as crianças. Tentei ver através daqueles olhos algum sinal do porquê de tamanha satisfação. Ele como se adivinhasse a minha pergunta, respondeu que apesar da passagem do tempo a essência do querer se apaixonar e brincar permanecia naqueles jovens e naquelas crianças. Emendou dizendo que apenas alguns minutos diários de contemplação bastariam para recarregar a nossa alma daquilo que temos de mais puro: a inocência.
Ele levantou-se, sorriu placidamente e com o auxílio da bengala pôs-se a caminhar. Levou consigo a manga que acabara de cair mais adiante. Vi naquele homem o menino de calças curtas e suspensórios... Compreendi, então.
A buzina ininterrupta despertou-me para o engarrafamento ao longo da rua... Era o piso de madeira que ainda teimava em ranger.
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